Voto perpétuo


(ao meu avô Joanin Viezzer)


Ave, Maria. Olho para o rosto da santa. Santa, santinha... Vagabundeio de cidade em cidade, olho para o rosto das moças, dos moços, de toda criatura adiante de mim, meus olhos miram, na guia dos olhos toda expressão.
Ave, Maria. Conheço e até onde vou, paro nos bares, visito as igrejas. É onde se conhece melhor a gente de um lugar, e as personalidades de que falam. Meus ouvidos fazem monta, e as histórias são contadas, de família, de filho, de prefeito, até de defunto. Penso, solerte, porque se repassa um causo de boca em boca, se é da vontade de entender, se é da vontade de tresvariar na sorte do infeliz. Há de ser, penso, o bicho homem procura parada e destino. De um nadica de nada, faz fuleiro, fita dourada.
Ou, digo, de tudo nos detalhes, a sobra mesmo, a faísca de uma emoção, a de ver, se entende um segredo guardado. Que vai no disfarce, na retumba de uma idéia, o sentido desde onde se pega a direção de uma estrada.
No ribeirinho pois, muita coisa fica na memória, a gente se entrete de lembrar. Coisa engraçada, agora penso, desses dois tipos. A memória já é vida, já é chão, mas e ai, a criança tiquinha, brincando olha curiosa o mundo, tudo quase novidade, e conta as estórias, a fada, o príncipe, a bruxa, o herói. O futuro, a criança vê, sendo o que vê, de outra sorte da do mundo adulto. O filhote de homem anda nos sonhos, anda no mundo, mas o futuro, vendo lá na frente, é um caminho diferente.
Por causa de que, penso, não é por bobeira , falta de experiência, mas é de uma outra vida que a criança vem, e a criança fala. Outra linguagem, vive sem a culpa, sem o medo, só a alegria. Mesmo se eu vejo, esse filhote de homem numa casa paupérrima, chão de barro, esteira para dormir, a criança sonha, e sonhando continua. O sonho não é contido pela vida sofrida, a criança guarda numa caixinha de fósforo, todo segredo da felicidade, e do seu futuro. Sendo, as pedrinhas que guarda nessa caixa, sendo um carrinho feito de lata, sendo o fio de uma raia, essa criança é sempre o amanhã. Mesmo no choro por causa da mãe, do pai, dos irmãos, da lombriga da fome, nessa caixinha de sonho, o filhote do homem, guarda o milagre da vida.
Pois, o homem quando conta uma história, repassa um motivo, não é do mesmo tipo. Por isso vejo nos olhos, lá no fundo daqueles olhos verdes, isso que penso ter encontrado um dia.
Coçava a barba, para saber qual a aparência de Cristo. Se eu fosse um pintor de quadro, qual a aparência de Cristo?! Sentado no banco da igreja dos frades Capuchinhos, pensava nisso. Uma criatura humana e divina, atiçava a curiosidade, por sobre as obras de Jesus, e vendo tudo que via de tanta viagem, todo tipo de gente, toda sorte, especulava nas idéias, qual a aparência de Cristo, sendo ele a verdade, a luz e a vida. Sendo assim o homem tão mentiroso de natureza, tão mesquinho, como pode ter enxergado a Cristo quando aqui nesse mundo esteve.
Imagino, nesse chão do meu pensamento, o entendimento das meias verdades e o entorpecimento da vista quando de nada enxerga vendo a luz, tropeçando nos erros, e nas vaidades. Quase sempre, desde muito cedo, acompanho meus pensamentos, porque a gente também é anjo a todo tempo das criaturas que devemos cuidar. As criaturas de fora e as criaturas de dentro. O pensamento é estrada, é chão, é edifício, é treva, estrela de um recurso por toda necessidade de aberta.
Se eu cumprimento DEUS, tiro meu chapéu, me ajoelho, rogo a DEUS no púlpito da igreja, não é por forma de repetir a saudação do povo ali dentro. Faço isso, como fazia meu avô avozinho de mão dada comigo nessa mesma igrejinha. Tirava o chapéu e segurava no peito, e eu olhava os olhos dele e ele acreditava não mentindo e nem falseando a DEUS. Sentava no banco, as pernas abertas, as botas, as mãos grandes carregadas de trabalho, procurava do mesmo jeito, atinar o pensamento, as idéias, pra modo de encontrar o fio, o sentido, a direção, a providência divina. Mas meu avô não pedia nada, e nem implorava nada, porque não tinha preguiça nas idéias e no pensamento. Cumprimentava DEUS e sabia que era acolhido. E o milagre dependia só dele e de todo trabalho feito do seu entendimento. Meu avô não era doutor, mas tinha a sabedoria da vida e eu sempre, sentado, pequenininho, do lado dele, sabia qual a luz dos olhos azuis do meu avozinho querido, no altar do Senhor.
O rosto de Cristo, se eu olhasse para ele hoje, atinava, de que jeito era?! Essa parada que fazia quase sempre, de quem entra na igreja, de passagem, entre um porém e outro, era sempre uma pastilha que eu encontrava para essa parede que meu avô cal finava. Sentado, na parte rasa desse rio, olhava o pescador que era Cristo, olhava o pescador que era meu avô, e acabava nas barbas compridas e brancas, no silencio fundo, no mergulho dos olhos no fundo das pupilas: o frei velhinho olhando a cruz de Cristo. Encontrar essa pergunta e essa resposta, porque é dito que quem sabe formular a pergunta, é porque já tem a resposta. Meu avô era assim, e assim mesmo fui me fazendo, feito eu, não sendo padre, nosso caminho era de vida desbravado igual, sem mentira, de sagrado e de profano.
Sem mentira e sem medo, mesmo especulando a ermo, batesse numa dúvida, ou num assombro de sentimento, a vida tinha sentido e forma. De manhazinha o cheiro de capim, o orvalho caído. Interrogo pela estrada afora, meu desassossego, a parada, a meia volta, quando encontro teus olhos verdes. Já sei, sinto, agora entendo, sentimento de homem pra onde vai, descansa nessa paragem dos olhos verdes...
Os olhos verdes um dia, num sonho sonhado, acorda outra pessoa no sonho, uma parte remota, uma vida vivida, o espírito em algum lugar esteve de soslaio, no vagabundear trouxe para a vigília da cruz, o cheiro e o modo desta outra vida.
Os ombros ficam chumbados do peso daquele trabalho. Os olhos miram até onde o sentimento foi cumprido. E a saudade, incrível, reparte o mundo, uma pessoa se foi, ignorado o destino, esteve tão próxima, tão intima de nossa querência.



Denise França.

Comentários

  1. Seu jeito de escrever é puro e verdadeiro e leva a gente prá os tempos de criança!
    Parabéns!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

FALE O QUE PENSA E SENTE, SEM CENSURA, MAS TENHA O RESPEITO DEVIDO.

Postagens mais visitadas