O Capitão do Mar


Assoberbei. Quanta estranheza sendo único, eu mesmo. Outra vez amanhã, me olham não vendo, fosse eu nascido assim, para sempre os demais procurado, qual a razão deste destino.
Qual a razão deste destino. O capitão do mar, sendo o mar mesmo, a ponta do mar lá longe, uma vara fina de fim de vez, de nunca mais. Que doideira dá na alma, olhando o horizonte do mar, o sentimento ficando na lonjura deste ponto, uma ilhota, Ilha das Cobras, volta com a cota da saudade. O mar sabe que acabou, que tudo é esta linha firme de busca, e de distância.
O mar sabe. Que a falta de chegar não se acaba e a luta com a dor da saudade se estende neste tapete e se enrola de onda e chega fininha na praia que traz, de muita valia, um gosto salgado.
Assoberbado, com tanta água, invólucro de fundura, mergulha dentro do meu sentimento e traz uma notícia a beira da praia.
Assoberbado, nesta beirada, mergulha. As águas se chocam com as paredes de pedra, lavam, serpenteiam e voltam. Misturado, todo sentimento. Misturado com mais alguém, o sentimento é conhecido. Sozinho, o sentimento se abre até latejar, dá saudade, muita saudade, volta, encosta, dá angústia. Eu te deixei por nada...
Pode ir embora! Pra toda vida, pode não voltar mais. Eu mais espero que o meu amor se vá, de vez. Eu mais espero que não volte pra me machucar. Outra vez já não acredito.
Impertinente como as ondas, teimosa como tudo. Reabro, perdida de contar as vezes, o quanto tenho amado, provocado este sentimento em quem não o sabe sentir. A fundura de enxergar o mais possível, a variação da luz na superfície. Queria ver outra vez, pra nortear meu pensamento com o teu rosto de homem. Homem sendo. Nunca canso de imaginar a tua voz, o teu sorriso. A fundura de enxergar o mais possível, a tua encosta que recebe a minha vontade. Por voto, tenho amado sozinha e dado de mim até o mesmo sentimento como se houvera sido entregue a dois.
Quando amo, não respondo a nada. Se nadando até o fim, houvesse outro fim, reabriria um outro mar. Encontraria salvo, em algum lugar, a água de uma cascata e, escondido nela, o curso do teu rio. Quando amo para outro mar, ando na deriva do meu ser e sou aquilo que amo.
Sou aquilo que amo. O mar em sua forma material veste esse significado de seu criador: todo o orgulho de DEUS. Sou aquilo que amo. O mar, firmamento dissolvido em lençol transparente, esteira do infinito que se desembrulha, tangendo o céu do imaterial desejo de eternidade.
Sou aquilo que amo, meu orgulho. Movimento esta pulsação, escuto o teu coração bater. Tua respiração, o cheiro de tua pele. Sou aquilo que amo desde o início até o fim, o alfa e o Omega, a valência dos meus dias sobre este raio que circunscreve a terra: N A O.
Sobre este nada absoluto, edifico toda a certeza do meu amor: N A O.
Minha resolução acompanha o teu nascimento. Tudo e nada, abismo para dentro, abismo para fora. Forquilha que aglutina o ser e a falta-a-ser. Onde cabe o início desse veto que solda o corpo neste chão para sempre. Por esse corpo ter o seu estado e o seu pé. N A O. Letra.
Fui até o outro lado, o outro lado esteve comigo. Pertença dos pobres. Neste sítio de pescadores, Matinhos, vejo as canoas lado a lado, a cintura das canoas, cada cor uma extensão ocupada no mar. Os territórios e os sítios do mar são cavalgados pela coragem desses meninos caiçaras. Eles descobrem a sua hombridade e coragem em cada pedaço de se abrir o mar agora para lhes obedecer não obedecendo.
Respeito os homens de lá, os que trabalham. As gaivotas como estes homens, pousadas no chão, olhavam qualquer coisa de parecido e amigável. Entre eu e eles, a minha memória. Do mar vendo de longe como se ali alguém houvesse dito o meu nome para que agora eu ali estivesse. Desocupando uma das canoas, carpindo o mar deste sentido que só o pescador sabe.
Desta cortina de garoa, o meu amor tem vontade. O mar sabe, deve acordar a miudeza do infinito, neste grão de areia. A miudeza do infinito se descobre quando a sensação nos avisa o momento certo, onde começa, onde termina, onde se encontra acabado. A sensação nos avisa que a nossa presença naquele instante cabe no pensamento de mais alguém. Por ali também passou e firmou este pensamento e este compromisso. O arco-íris me alcançou ali, onde havia esta presença. Inaugurou e me aproximou, me colocou dentro deste sentido. Eu, o arco-íris, o mar, o pescador, DEUS. Uma unidade de tempo.
A unidade, ligação por excelência. A sensação, vínculo de presença. Também fui criança em Guaratuba, criança amando um outro lugar, longe de casa, criança amando e querendo ali morar, neste mar mesmo, o mar e a criança sendo. Agora sendo um, unidade.
Nem sempre, ou, quase em todos os casos, o sexo não conduz a esse vínculo de aproximação. Hoje, não em minha época, onde eu vivo e onde eu estou, o sexo traz ao mesmo tempo e ao mesmo lugar, a outra pessoa. O sexo é isso. A trepação a que estão submissas pessoas isoladas não se encontram nesta linha ocupando o mesmo lugar, hoje. Por isso passam, passa o instante, não se torna lembrança, e nem alcança o número, porque não conta. A conta se conta a partir do que dela se furta. Ao menos um, este não passa, aumenta a série.
Por isso, eu conto, conto história e dela não me furto, porque não minto. E conto com você.
A criança em Guaratuba, a sensação, o cheiro do mar, a areia macia, a gruta da Bica da Santa, a água. Olhava ali aquele sítio, não via ninguém. Não via outras crianças. Tinha pena daquelas meninas que eu via sem ver, e me diziam que eram prometidas a DEUS. Eu tinha pena de mim e pena delas, porque eu não as via brincando. E para mim, elas estavam sozinhas sem mãe, sem a Nossa Senhora. O que me dava então, medo de pisar em alguma cobra, quando andava na Bica sozinha. A Bica da SANTA.
O sexo conduz a isso. Nem as santas se furtam ao sexo. A santidade nos conduz a isso, a sensação de pertença, da presença neste lugar, do tempo compreendido nessa partilha. Aquele tempo, esse tempo, presença efetiva. Eu sei que vou te amar...



Denise França.

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