A HORA DOS CAMELOS

Essas crianças mágicas que chegam a hora do Ângelus, com suas estruturas metálicas, puxando atrás de si armações de papelão, pequenos blocos estacionados aqui e acolá, ao redor do resto do dia, os picos de lixo.
São povos desérticos, são camelos de outrora. São fibras de couro, músculos esparsos, estendidos para a periferia das grandes cidades, em seu êxodo, em sua descoberta deste oásis residual, mecânico.
A hora dos camelos... De uma ponta a outra ponta, as pedras douradas de luz soletram a chegada do inverno, as folhas secas caem neste canteiro de uma cidade, o seu centro, a sua capela onde param esses anônimos, para entoar uma oração ao entulho. Fenômeno que pertence exclusivamente a raça humana.
Os camelos descansam, dormem, guardam... São a memória, o tempo de um outro relógio. Sem descanso, precipitados de matéria inerte, ficam isolados e aquecidos no inverno dessa metáfora poética dos fardos, fardos pesados, os carrinheiros, camelos do asfalto.
Um escudo ou uma couraça, tampões do cheiro acre, revelam para o mundo, ou para nada, a curtição no fundo das latas. Quando chegam ao cair da tarde, e se misturam ao povo, nesta avenida de lampiões e de costumes europeus, os camelos sonham, junto a tudo aquilo que carregam.
Conseguem carregar... Os seus sonhos são realizados em outro tempo, outro espaço. Poderiam procurar pela utopia, mas a utopia não os socorre.
Então, atentamente, através desta vidraça, aonde me leva o entusiasmo dessa realidade, vejo, deslumbro nesses movimentos, outros movimentos, meninas ginastas correm e saltam sobre esse tapete, afastam e diluem esses fardos, e ambas as realidades se confundem, se misturam, ultrapassam seu próprio prazo de assimilação.
Como entender a perfeição?

Em outra dimensão, cabe o perfeito. Escrever corretamente não me é perfeito. Falar corretamente não me é perfeito. Cumprir a etiqueta não me é perfeito. Seguir o protocolo não me é perfeito.
Há sobre mim um efeito da língua. A palavra que me chega quase incorreta, interiorana, a palavra mais humilde, ou até a palavra de baixo calão, esta palavra, posso dizer que eu a quero. Como a quero, a esta palavra, que serve minha humana parte, onde minha pele entende o seu ruído e propósito. Sensibiliza minha atenção, esta palavra caluda.
Nenhuma obra é tão certa quanto aquela, que se arrasta por uma dolorida causa e, a beira de precipitar-se, acha seu destino, entende sua glória. Mostra-se, não incorreta, mas cabível.
Um corpo sem glória, destituído de procura. Os calos e as feridas de um mendigo, chegam sem palavras, ou, contando todas as palavras, ao menos uma, ou sem nenhuma, sinto em dizer, é onde encontro o razoável insensato dos que se vestem com gravatas de seda, as que se apresentam mascaradas sob falsa arte, em públicos políticos do povo, sem nenhuma devoção e com as bocas repletas de vocábulos.
No chão de barro, as trincas do sertão. Até aquele momento perfeito, o mais esperado: um dia há de chover...



Denise França.

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