Reconstrução Mental

Dedicado ao meu caro Amigo, Delegado Rubens Recalcatti.


MOVER AS AREIAS DO DESERTO



Eis que o meu julgo não é de cimento e nem de pedras, mas de barro, o que significa que preciso construir. Reconstrução, existem essas arestas no discurso de um sujeito que criam esse movimento, esse movimento muito próximo ao das areias desérticas. Se aquilo que escuto me conduz até determinado momento, aquilo que eu não escuto, o mais importante, está por baixo, num rastro indefinível desse movimento.

Porque a pessoa humana intenta chegar até o pote de água. Sozinha, ela e o pote, nada existe ai demasiado. Mas, o demasiado em relação a isso, é que esta criatura precisa me conduzir a esse pote e que eu aprecie o que existe de transcendente nesta ação. Do contrário, a insuficiência de sentido para ela. A medida da criatura humana é esta: demasiado.

A obra humana, da mesma feita. A obra na sua inteireza, não significa muita coisa. Mas, a vestidura da obra, a sua arte defensiva, esta sim tem alcance real. Por uma razão muito simples, a criatura humana pode mentir, ou iludir, mas ela está definida neste patamar de ir além ou aquém, dada a sua miséria, a sua condição de estrado de um transparecer, de uma aparência de ser.

Moldar um sentido a essa captura imaginária. Todo o discurso do sujeito tem um revestimento por fora. Um reboco que localiza algo, um significado. De um modo geral, no alheio das coisas, eu posso dizer, a sujeição, o assujeitamento, estou a mercê daquilo que digo. Existe essa necessidade de submeter o outro, inflacionar o outro, e até personificar o outro, através de uma semelhança, de uma ocorrência deste sentido, desta areia e deste vento ou, falando de reminiscências, desse evento.

Em que momento, eu me pergunto, a arte defensiva, na vestidura da obra desta criatura, torna-se violência, torna-se crueldade?! Nos parece que, ao falarmos de violência, logo nos vem algo mesmo como uma perfuração. A bala atravessa o corpo, o faca perfura o corpo, e assim por diante. Esse material bruto, não quereria dizer outra coisa, a impossibilidade de chegar, a impossibilidade de locomoção, de movimento, de espacialização do sujeito, criatura e esboço de um rasgo imperativo deste movimento humano?!

Por que a palavra já não está sendo suficiente para essa criatura? Esse desmantelamento do significado e do sentido, essa sujeição que implica na interrupção, neste basta. Neste basta do estopim que se inflama ao atravessar o corpo do outro, marcando esse distanciamento em relação ao outro, ou essa abrupta locação no espaço alheio. O corpo do outro, atingir o outro, fragmentar essa unidade, deixá-la incapaz, aonde está essa transfiguração de posse, essa obsessão a identificar o sentido a coisa dada?!

“Cego de ódio”, num poema clássico, do tipo Willian Shakespeare, seria cabível aqui nessa página?! Se houvesse clandestinidade naquilo que eu digo e naquilo que eu professo, haveria lugar para tal. Mas, ainda assim, o ódio expresso da criatura humana está aqui documentado apenas como uma deriva pulsional. A violência e a crueldade chegaram a tal ponto que eu diria, “para não falar em ódio...”. Não posso mais dizer o “sentimento” desta criatura. Porque não há movimento de evocação de um sentimento. O movimento deste sujeito que usa um estoque, ou uma faca, ou todo um arsenal, não é sentimento, mas vazio, insuportável condição, insuportável saciedade.

No sentimento está implicado relação e convivência. Tempo, duração, permanência, insistência, controle, domínio, ocasião, encontro, repetição, amplitude, extensão, e mais ainda ... Freud levava horas, dias, anos, décadas, para estudo de um caso. Por que um caso? Se é só uma pessoa que nos procura, por que se torna estudo de caso? A vida para esse senhor com certeza tinha uma dimensão bem mais elaborada do que podemos sentir quando ouvimos um doutor da medicina atual. O mundo desta pessoa, a realidade desta pessoa, a herança cultural deste sujeito, isso era o que importava, e porque se estudava tantos anos um único sujeito. A doença mental já deixara de existir naquela época para Freud. Aliás, para Jesus Cristo também, antes de Cristo e depois de Cristo...

Quanto tempo vai pra nos considerarmos amigos de alguém, ou vice-versa? Quanto tempo vai para nos sentirmos amados e bem-amados? Penso que Deus está elaborando este projeto humano. Algo acabado é algo substancial, nos sentimos comprometidos, existe uma razão, existe uma direção, um sentido, existe um trabalho sendo efetuado dia a dia. Empenhamos a nossa palavra, empenhamos a nossa vida.

A comiseração humana se constitui quando nesse trabalho de consistência vem dar uma anuência ao saber enquanto poder. A cada dia que nos encontramos com uma pessoa amada, amiga, sabemos, temos uma noção desse estado que nos vincula, temos uma moção a cumprir, e preservamos dia a dia a existência desse vinculo, deste sentimento, posto que nos dá bem-estar e satisfação pessoal.

As boas obras, nós as chamamos assim porque são caritativas, nem sempre criativas. Voltamos ao tear desta forma, e alinhamos o significado, observamos a sua incongruência em determinados casos. O que não é bom para um, pode ser muito bom para todos. Com a lei do impropério, do ilegítimo, do incabível, nós trabalhamos. As circunstancias de um crime. Em determinado momento a lei corrige e diz: não há prova circunstancial para tal... E eu, que estou me debruçando sobre esse fenômeno da violência e da crueldade há algum tempo, posso dizer: o suspeito é aquele que sabe, reedita seu movimento. No movimento Psicanalítico, desde o seu inicio, ou melhor ainda, por se estar postulando um saber, dizia-se “o sujeito suposto saber”, a figura do analista. Suponhamos que seja verdade isso, e então, a derrocada deste movimento, “ele sabe o que faz”... O que presta para ser analisado é o material que outros jogam no lixo, acham inconveniente, fazem disso piada... Esse é todo o material que nos serve, e que nos cabe, porque é o material da completude humana.

Vamos usar poder de força, armamento, inteligência, porque devemos isso aquilo que nós nos esquecemos e não sabemos a respeito da condição humana. A blindagem pode ser melhorada, para subir o morro, porque cada vez mais o acesso a essa condição humana é frustrante. A Lei do Imperativo Categórico, tudo posso. Escutar o sujeito humano, palavras ditas mas não escutadas...

O acervo lógico coloca uma criança de 10 anos atrás das grades, essa criança roubou e matou... Essa criança permanecerá ali ao lado de outras por muitos dias, semanas, anos, quem sabe uma década ou mais. Fiódor Dostoiévski, em “ Recordações da Casa dos Mortos”, ano de 1861, fala sobre a condição humana, descreve a situação e o funcionamento do sujeito humano dentro da carceragem... Descreve de forma fenomenal, a alma humana, a culpa e o crime. “O Processo” de Franz Kafka, da mesma maneira, faz um relato sobre o processo a que foi submetido um sujeito... Enfim, faz diferença, essas duas obras fazem muita diferença, em relação a todos os processos legais, a toda legislação vigente, e a toda manipulação legal.

Isto feito, porque faz diferença, cabe escutar por muito tempo, as redes e rádios que tem por programação anunciar, transmitir as ocorrências criminais... Sem duvida uma programação que toma por muito tempo a vida do cidadão, que colabora para o suprimento e manutenção do apetite humano, e da mesma feita, para seu constrangimento, vergonha, e culpabilidade.

Seriedade, esperamos seriedade naquilo que é realizado. O que é um trabalho sério? A palavra seriação significa continuidade, significada correlação, significa mediação, significa função, significa coordenada, etc. e tal. Uma coisa leva a outra. A concatenação das idéias por exemplo, saber especificar, fazer a leitura de um acontecimento requer do sujeito que ele “saiba” o que está fazendo.

O suprimento de informações que capturamos no dia a dia, é imensamente maior do que antigamente, em razão dos meios de transmissão. Essas informações são processadas, damos sentido a elas, conscientemente ou inconscientemente. Vamos escutar a noticia de um crime, um acontecimento, em uma rádio qualquer. Fulano de tal sofreu a investida de ladrões, levou 3 tiros, e foi levado ao Hospital, etc. Ali está o repórter policial, que fará uma entrevista com o Policial ou Investigador, e paramédicos... normalmente é assim que a coisa se desenvolve... O repórter, jornalista, vai repassar isso para o expectador, e nós ouvimos não apenas a narrativa do acontecimento, mas ouvimos criticas, ouvimos apelos, ouvimos uma “série” de elementos em torno desse acontecimento. E, por sua vez, também começamos todo um processo de elaboração em torno de tal fato.

Até ai nada de mais. Porém, o sujeito humano, a criatura humana, faz uma leitura da realidade em razão de sua própria experiência de vida, e desta maneira, uma pessoa e outra pessoa vão analisar o acontecimento de forma diferente, partindo de premissas diversas... O que me preocupa é a fragilidade humana no sentido de ser a cada momento levada a pensar isso ou aquilo em razão da programação destes meios de informação. Ser levado a transformar esse acontecimento alheio num movimento do tipo estimulo e resposta, totalmente condicionador de um propósito individual e não em razão de um discurso sério e ético sobre a realidade deste acontecimento.

A manipulação da pessoa humana, a tentativa deprimente de condicionamento de um pensamento ou de um comportamento, por si só nos mostra a relatividade política e cultural de um povo. Quanto mais se manipula o sujeito humano, mas se vê a força autoritária, absurdamente autoritária de um legislador ou uma manobra política partidária. Sigmund Freud, uso o posicionamento ético deste senhor justamente para revelar o quanto ele se preocupava com o fator humano em seu trabalho... Desde o inicio, este senhor foi contra tudo o que existia em matéria de medicina, para revelar-nos uma coisa muito mais importante que não estava sendo levada a sério. A ética profissional, a formação ética do sujeito que trabalhava com o material humano... A sua conduta, a sua leitura, a elaboração do seu pensamento. O desejo do Analista!!!

Raridade, o desejo de uma categoria profissional... O crime tornou-se uma categoria profissional do mesmo modo, e ao entrar na Delegacia, o possível criminoso, sabe o que fez, e sabe o que acontecerá naquele instante ali ao entrar. Sim, ele assinará uma folha, e vai sair pela porta da frente, cumprindo o seu honorário profissional. Até que as provas circunstanciais funcionem e sejam verificadas pelo profissional competente desta Delegacia Policial... Na verdade, sabemos, eu e ele, que as provas circunstanciais já não indicam ou lhe instruem para nada. Para nada mesmo.

Vamos repassar algumas coisinhas importantes, mais importantes do que a causa circunstancial... Lembro-me das cartas escritas e enviadas por Sigmund Freud a seus amigos, doutores, cartas enviadas a Fiells, a Einstein, Charcot, Jung, a tantos outros, cartas onde ele relatava seus pensamentos, seus achados, suas duvidas, suas criticas. Coisa linda!!!. O desejo do Analista, por onde passa tudo isso. Infelizmente, hoje em dia, mais do que em outros dias, nós ouvimos doutores em Palestras, comunicação e informação a longa distancia, mas tudo isso marcado por uma característica muito pessoal: a exacerbação da auto-estima, o status, o cargo, as influências...

Freud vasculhava tudo, imagine a entrada no escritório do doutor Freud, espetacular, aquela papelada toda, aqueles ícones, aquelas gavetas repletas, a estante repleta de livros, canetas exóticas, esculturas de outras eras, mosaicos, cachimbos, enfim, tudo mesmo que se podia imaginar de uma técnica analítica, de uma mente apaixonada pela verdade, pelo detalhe, pela justa causa, pelo sentido humano... Pela descoberta, um arqueólogo profundo e exato. Pois é, senhores doutores, o “sentimento de culpa”, o “castigo”, o “crime”, a “repressão”, são artefatos lógicos de sua descoberta, e o interesse por toda forma cultural, a cultura de um povo. A Literatura, a Filosofia, as Artes de um modo geral, a expressão de um povo. Por que, falando deste incrível medico alemão, não podemos falar de descobertas brasileiras, do povo brasileiro, de nomes que nos causam!?

Eu percebi tantas coisas em comum entre o doutor Freud, e o padre Antonio Vieira, os Sermões do Padre Antonio Vieira, a obra toda, nossa, quanta semelhança com o pensamento do doutor Sigmund Freud. Por esses meios, se inicia uma pesquisa verdadeira, uma pesquisa apaixonada, uma pesquisa sem fim lucrativo ou status social... Precisamos de homens assim, homens simples, humildes, e de causas nobres. Precisamos desses homens para tornar essa loucura geral mais razoável, provisória e transversal em seu sentido histórico.
Grandes amizades nos levam a grandes descobertas... Um universo humano aos poucos sendo povoado pelas nossas tentações, pela nossa sobre valia, pela nossa esperança, pela sede do desejo que nos faz abrir esta concha. Por isso, e para deixar esse texto ser possuído, circunscrito pelo desejo alheio, eu encerro agradecendo a esses meus amigos sensacionais que me levaram ao longo da vida a essa mesma procura incessante e deliciosa. Foram poucos, mais foram muitos, porque valeram pela perenidade e eternidade na amizade, no amor, na paz, e na profunda indignação frente à injustiça, frente à deslealdade e crueldade de tantos miseráveis por ai. Agradeço a vocês que “quiseram” e me conheceram na minha verdade e se deixaram conhecer e descobrir, um grande e forte abraço.


Denise França.

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