LIVRO 06: A ESFINGE - Exercício de Leitura da Obra de Clarice Lispector (Ano de 1998)

Prefácio: A ROSA DO NILO

A cada três anos, as margens do Rio Nilo, uma espécie de rosa tem ali seu renascer. Ela se distingue por ser uma espécie sem relação com as demais espécies. Diria ainda melhor, esta rosa caracteriza esse rio e por isso, é chamada Rosa do Nilo.
Essa rosa marca um mistério profundo, fecundo, desses mistérios que não encontram revelação. A Rosa do Nilo só pode ser colhida se seu colhedor tiver apetência para tanto, pois é ele que lhe dá seu nome. E dando tal nome, não é fácil de dar, a flor marca um florescimento anterior para ele e é só assim que a encontra em meio as demais.
Pois é de um encontro que se trata, respondendo por um chamado que vem de entoar o nome da Rosa de maneira a garantir-lhe a abertura e deparar-se com o traço onde é descoberto esse nome. Esse traço, no desenrolar desses três anos é inscrito como risco no corpo de tal colhedor. Esses três anos podem corresponder a décadas ou simplesmente a meses, dependendo da envergadura do sujeito para receber em reconhecimento o traço dela.
O traço da Rosa corresponde a uma formação que lhe é peculiar, como quando a imagem vista corresponde aquilo dela falado. Nesse sentido já ai entendamos que há uma Rosa do Nilo para cada um. Não se trata de individualismo, muito pelo contrário, apenas um modo de aproximação para cada um que tenha correspondido ao que dela emana. Pois não existe mais de um método para isso acontecer.
Existe antes um a menos que ai se coloca. Assim como se coloca uma derivada para cada operação.
Portanto é por procedência que se pode chegar até ela. De uma procedência incalculável... Daquelas que marcam a origem justamente pela inconveniência de ter de ler um enunciado milhares de vezes, deslocando a primeira pontuação a cada palavra, até aceder aquilo que a primeira frase afirmativa contestava nas demais.
De contestação afinal, a Rosa do Nilo anda cheia. Mas afinal, contestações que lhe são favoráveis. Pois o que mede em vista não são suas ações, mas o tributo dessas ações a um terceiro. Uma delas é de ninguém ter dito que haviam Rosas do Nilo, mesmo que soubessem. Enquanto procuram por rosas, perdem-se machucados nos espinhos. Há uma rosa, apenas uma, ainda que se falem de rosas. E se procurarem pelo lado fácil, o dos espinhos, não encontram traço algum. Pois o traço da rosa não tem nada a ver com o que dela emana, mas com o que lhe falta para ser e que constitui sua essência.
Falar muito não ajuda a achá-la, desvia a atenção. Ainda mais quando se comete a imprudência de falar a dois e os dois conversam a esse respeito. Com ela não há conversa e muito menos, conversa respeitosa. E é sem respeito que nós a tratamos e ela nos coloca tanta dificuldade. A Rosa do Nilo, saibamos, não diz respeito a ninguém. Por um nome se trata, porque muitos achados antes passaram por ser procurados. São muitos e poucos os escolhidos...
Se um retalho nos foi dado da procedência da rosa, foi dado a nós por procuração daqueles que ficaram sabendo. Sabendo ficaram, pelos efeitos da rosa sobre eles. São os efeitos que nos garantem sua existência. Efeitos familiares que servem para ser vistos, pois a mãe não reconhece no filho seus defeitos, antes que lhe insurjam como não tendo nada a ver com ela; mas influências é o que sempre dizem. Mas se falamos aqui em influências perniciosas da Rosa do Nilo, estaremos mentindo quanto ao status que ela poderia gozar diante de nós. Aliás, se em status falamos, jamais descobriremos seus efeitos verdadeiros. Colaterais. Pois sua verdade é a de nos apresentar os defeituosos esforços de uma inverdade dita insana para o Homem.
A Rosa do Nilo nos coloca diante de uma quarta hipótese, já que seu aparecimento está em via dos três. De ela ter sido cortada, pois o sujeito que a colheu pela primeira vez, colheu-as para si. Enganou-se redundamente, pois colher alguma coisa não acarreta em arrancar, mas em plantar. Perdeu-se em meias verdades. Planta-se trigo para colher, planta-se verde para colher maduro. Se ela foi cortada não estava ainda no seu tempo, não nos dava nenhuma garantia. Só se pode cortar algo que nos de garantia e mesmo assim a cortada, é ainda uma “sacada”. O sujeito a cortou por estar ela assim, sozinha, deve tê-la achado coitada. Imprudência sua, pois seu estatuto não é de ser sozinha, mas única. E coitada, de geração para geração, ficou pra que tivéssemos um álibi ao cometer esse mesmo ato, cortando-a também. Seu estatuto é sua estrutura. A Rosa do Nilo tem sua medida, antes de mais nada. Depois entendemos essa medida como sendo um pagamento. Paga-se o devido preço por obter sua visada. Obtém-se a visada atropelando-nos em cima de um monte e berrando, “olhe ela ali, nas margens do Nilo...”. E isso afinal é muito gozado, pois o Nilo passa a ser secundário então em relação a ela. Fica-se com certeza de que sua procedência verdadeira não é a do Nilo, não veio do Nilo. Veio sim da descoberta do Nilo, mas com ele não tem relação direta. Relação inversa caberia melhor aqui, por dizê-la.
Rosa que se veste para nós de seu revestimento tão mentiroso. Minto. Nós a vestimos, a travestimos embaixo dos cabelos de “nossas” mulheres. Uma coisa não tem a ver com outra e isso, é o que se pode pôr como conclusão. Tratar-se de outra coisa, não é a mesma coisa de maneira diferente como pensava. E é ver que o pensamento é coisa diversa do pensado, já dizia um colhedor da rosa: diferente e sempre vai ser assim que a pensemos, pois ela é denúncia dessa limitação. Que aparece como limite para nos introduzir em algo a mais desse limite. Como um ovo fechado. Quem já não sentiu, ao abrir um ovo, a sensação de desperdício? Desperdiçou-se ali a forma mesma do ovo, mas ao menos se teve a noção vivida dessa forma. Do contrário jamais saberíamos a respeito de seu exterior. Um exterior compacto, concentrado nele mesmo. Não confundir concentração com conteúdo: o conteúdo, como antes já falamos, está para a forma assim como o Nilo está para a rosa. Cometer um pecado ai é chegar a se sentir tapeado em alguma coisa.
Concentração portanto é ter uma direção lógica para algo já nascido, e que se mantém apartado. Sua concentração pode ficar como sendo ate obstáculo, chega-se ali e daí? E daí digo o que já me disseram, é que não posso dizer por não fazer parte dela. Ou não fazer parte do bando. Sou uma coitada nessa história dos coitados. E é nisso que a aproximação dela pode acontecer, pois um coitado é um pouco mais apartado do bando que os demais. Um coitado sem pena de ser coitado. Quem sente pena jamais se aproxima, é esquecido também, ainda faz parte de alguma geração. A geração faz a cria apenas, fica pondo ali sem saber nada do criado. Fica assim, criado-mudo, apenas servindo.
De depósito a Rosa do Nilo não tem nada, haja visto sua concentração. E é nisso que um saco-vazio não para em pé. Necessário, o saco-vazio, mas para encher bastante, no sentido de aporrinhar-se o suficiente. “Ficar de saco-cheio”, quem fica assim não produz nada, mas também não se desvia do bando. Quando de saco-cheio o sujeito só comete besteiras, das boas, e ai sua felicidade, felicitação, final na ação. Ação cometida por outro, onde ele se intromete, sem deixar nome. Se intromete ali, nos tropeços, faz causa, dos causos criados pela mente. O aporrinhado sai pela porta dos fundos sem querer saber de mais nada, sem se comprometer com o mal-estar alheio: se não se compromete, também não deixa o outro comprometido, com promessas.
O aporrinhado da Rosa-do-Nilo, seu defeito, é um (a)-porrinhado. Ele não volta, só faz, porque a comeu todinha.


A FREUD e sua descoberta do INCONSCIENTE... ANO de 1998.

Denise França.


Colégio Freudiano de Curitiba. .

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