RESENHA ANÁLISE DE OBRAS E FILMES

CURSO TÉCNICO EM PRODUÇÃO AUDIOVISUAL
ARTIGO DE ANÁLISE COMPARATIVA DOS DISCURSOS LITERÁRIO E FÍLMICO DAS OBRAS LITERÁRIAS “A HORA DA ESTRELA” E “DIVÔ E SUAS RESPECTIVAS ADAPTAÇÕES PARA O CINEMA.

Desde o primeiro contato com as duas obras literárias, até o momento onde nos deparamos com a apresentação dos filmes, adaptados de ambas as obras, muito foi acrescentado em nossa maneira de perceber a literatura e discernir os elementos de sua contextualização, signos, símbolos, significado, sentido, etc. Desta maneira, este enriquecimento na observação e percepção foi aprofundado ainda mais, com a imagem nos filmes.
“A Hora da Estrela” , romance de Clarice Lispector, de 1977, conta a história de uma nordestina que veio para a cidade do Rio de Janeiro, trabalhando como datilógrafa numa firma, e morando num subúrbio. Conhece Olímpico de Jesus, outro nordestino, operário metalúrgico, com quem tem um simples e “inofensivo” relacionamento. Além dele, Macabéa, a nordestina, tem uma amiga, Glória, e outras amigas de quarto...
“Divã”, romance de Martha Medeiros, de 2002, conta a história de Mercedes, uma dona-de-casa casada a princípio e, no desenrolar dos acontecimentos, começa um processo de análise, separa-se e descobre outros movimentos em sua vida até então desconhecidos...
A narrativa das obras citadas acima, tem um sentido alinear com passagens interpolares. O romance de Clarice Lispector conta a história da nordestina, mas no curso dessa história particular, Clarice cria um narrador-personagem, que reflete sobre o comportamento e ou conduta da nordestina.
A narrativa da obra “Divã”, também alinear, conta a vida de Mercedes por ela mesma, sem interferência do narrador. Ela fala sobre sua vida com um analista e, no livro, vai rememorando, lembrando sua vida, e questionando seus valores.
O personagem central em ambas as obras, é um personagem feminino, anti-herói. Em “A Hora da Estrela”, a nordestina Macabéa é um retrato da miséria, insignificância. A dinâmica do narrador, que não é fixa, faz com que ele próprio discuta o personagem Macabéa, e inclusive, faça comentários, tente otimizar a personagem, fazê-la crescer na narrativa. Mas Macabéa sempre volta a ser uma tentativa infrutífera de construção. Talvez a autora, nesse sentido, utilize o personagem metaforicamente para descrever a encruzilhada onde se encontra o escritor ao realizar sua obra. O narrador discute deste o início o ato de escrever, metalinguagem, e chega ao ápice, quando se apaixona por Macabéa. Observamos nisso, o momento de “independência” da obra em relação ao seu autor, onde o leitor aparece. O leitor dá vida a obra literária, a partir de sua interpretação, de sua contextualização, de sua realidade particular.
O personagem da obra “Divã” de Martha Medeiros, também é um personagem que mostra as vicissitudes da sua própria vida, e suas frustrações. Mas Mercedes não é assim tão contundente quanto Macabéa, porque o contexto histórico, o sócio-cultural deste personagem é outro. A personagem Mercedes vive e faz parte da classe média alta, se há alguma “miséria” é mais no sentido de ver o ser humano como transeunte ante todo o seu repertório existencial, emoções, sensações, sentimentos que transitam, se modificam, se solidarizam e outras vezes entram em contradição.
Macabéa mora num subúrbio do Rio de Janeiro, local, e toda a história se desenvolve no quarto onde ela dorme, com as amigas, no trabalho, e em uma praça, com pequenas variações. Um espaço bem delimitado, mas a extensão do que isso reflete é bem maior. São todos aqueles indivíduos retirantes, que saem do nordeste tentando, num êxodo cruel, sobreviver na “cidade grande”.
No “Divã”, a história se ambienta num bairro de classe média alta, e também poucas variações, o seu contexto é mais local do que global. Mas, o psicologismo da personagem, pensamentos e reflexões, tornam-se universais, pois dizem respeito a própria vida humana.
Em “A Hora da Estrela”, a história tem continuidade, vai a seu limiar, só é fragmentada e entrecortada pela economia afetiva do narrador, que comprime e extende a metamorfose da personagem. Em o “Divã”, observamos que os pensamentos e fragmentos do discurso pessoal de Mercedes, faz com que as cenas se interrompam, voltem ao passado, sejam retomadas, significadas, e assim consecutivamente. Isso para compreender as motivações e interesses de Mercedes, quanto a sua história de vida.
A linguagem em ambas as obras, é uma linguagem compreensível, ao alcance de todos. Clarice Lispector, no entanto, elabora a simplicidade da personagem de tal forma que coloca a nós questões universais, nós refletimos Macabéa, fazemos um juízo de valor, retomamos nossas reflexões e pensamentos, a princípio na tentativa de remediar a “pobreza” da personagem, e aos poucos nos vemos em frente a uma humanização da miséria, nos confrontamos com essa mesma miséria no dia-a-dia e, o que fazemos?!
No livro “Divã”, a personagem Mercedes também faz um giro sobre a dignidade de seu mundo, a validade e qualidade de sua conduta existencial, mas, a nosso ver, a escritora Martha Medeiros, não tem a mesma capacidade de elaboração como o faz Clarice Lispector. Clarice faz com a Língua o que outra autora ainda não conseguiu e nem sonha fazer. Isso em razão da sua própria pessoa, do seu estilo inigualável.
Em ambos os romances, há uma história com princípio, meio e fim. E também, em ambos a “história de vida” é um cumprimento da história pessoal de cada um, retomada, reavaliada e reimprimida. Porque o próprio ser humano produz em seu dia a dia, os dias subseqüentes, o futuro. Produz o sonho, a esperança, ou, do contrário, o colapso, a decadência. Dois seres com vidas semelhantes, podem ter destinos opostos em razão daquilo que produzem a partir daquilo que vivem.
A arte de Clarice Lispector é incomum, a plurissignificação, não apenas pela contingência da variedade de significados, mas pela maneira como o seu estilo único aguça nossa sensibilidade, sentimentos e sensações, fazendo com que extraiamos da própria vida, pela lembrança ou recordação, sensações semelhantes. Quem sabe, o vazio de Macabéa e a própria miséria da personagem não sejam um convite a um preenchimento. Um ato de colorir um personagem sem cor, e transformá-lo para a vida.
Já a obra de Martha Medeiros, suas reflexões e pensamentos através de Mercedes, assentam num padrão, não são excessivamente longínquos.
O solilóquio Clariceano tem muito a ver com a “música”, tanto que Clarice Lispector se refere à música em sua dedicatória. E, por incrível que pareça, a musicalidade de suas letras. O escutar, o ouvir, o silêncio e a meditação, o ritmo, o tempo, estão presentes em seu ato de escrever. Talvez ela escreva como quem compõe uma sinfonia.
As obras de Clarice e Martha Medeiros, possuem em seu contexto, o fluxo de consciência, o efêmero, o subjetivismo. Em “A Hora da Estrela”, o narrador se interroga, deixa seus pensamentos saírem e escorrerem na ponta da pena. Volta, retoma, nega-os, ilude-os, simplifica-os, devolve-os, compartilha-os, enfim, não atrela o seu fazer apenas numa seqüência, e num raciocínio frio, esgotável em uma pergunta única.
Martha Medeiros, mais simplificadamente, dá as nuanças deste mesmo movimento. Deixa o pensamento vir, chegar, e os participa de primeiro, de prima.
Percebamos o nome do livro “A Hora da Estrela” e o desenlace da vida desta miserável nordestina. Ao final, depois de sair de uma cartomante que lhe devolve a esperança, a alegria (ela até sorri) o sonho, ao atravessar a rua, absorta em seus devaneios (talvez os primeiros), é atropelada por um carro que tem o emblema de uma estrela, a marca.
Essa estrela, tal qual o “símbolo” , pode remeter a muitas coisas, desde a estrela de Davi, alumiando e prescrevendo a chegada de Jesus, enfim, também para Macabéa (quem sabe, Macabéia dos macabeus), exista salvação, se não é morrendo que se nasce para a vida eterna... E, ou, aquela suprema conversão, quando em estado de devaneio, apostamos no ideal, caminhamos da realidade à realização de um sonho, transitamos na utopia. Característica do ser humano, mudar, criar, transpor.
O nome “A Hora da Estrela” tem um sentido irônico e revelador. Irônico e sarcástico em relação aos moldes primários da injustiça e da miséria do povo nordestino. E revelador em relação aquilo que podemos e conseguimos produzir a partir de uma “aparente” miséria. O fato de descrever a miséria e significar sua essência, sua verdade, já é um ato de mudança, para o escritor e para o leitor.
O filme “A Hora da Estrela”, adaptação baseada no livro, segue a obra da escritora, mas descarta o narrador. O cenário do filme é bem realista, frio. A personagem do filme segue a personagem do livro, corresponde mesmo à pobre Macabéa. O filme é classificado como gênero dramático porque se fundamenta numa história de amor, entre Olímpico e Macabéa. Pobre amor e quase irrealizável, mas existente naquele mundo parco de Macabéa. Tem seu valor e sua ternura naquele último momento onde Macabéa é atropelada e Olímpico se volta após a recusa de Glória, caminha para o subúrbio onde mora Macabéa, para entregar-lhe um presente, um bicho de pelúcia...
Outro aspecto revelado pelo filme, é essa cisão na personalidade de Macabéa, o não-eu. Macabéa segura nas mãos um espelho quebrado e vislumbra sua imagem, questiona sua própria identidade, parece uma pessoa sem existência. Pequenos detalhes no filme conseguem demonstrar aspectos do livro, como também o rádio onde Macabéa assiste notícias, recolhe palavras novas, aprende sobre a linguagem, o caminho para a formação de seus primeiros pensamentos. No filme, Macabéa pergunta a Olímpico o que é isso, o que é aquilo, esperando que ele a ajude a entender... Em outras circunstâncias, Macabéa pede desculpas, como se só a sua presença fosse um incômodo aos outros. Característica do livro de Clarice, pois aquele que se questiona, transforma sua existência, nasce para o mundo, marca presença em relação aos demais. Tal é o papel do rádio ali no filme: as histórias e os sonhos de amor, o rádio anuncia como promessa de uma nova vida.
A personagem Macabéa retrata também, aproveitando o gancho, o sonho do povo nordestino que se evade para as grandes cidades, à procura de felicidade. Muitas vezes, não só a cidade grande não oferece nenhuma oportunidade de crescimento, mas o nordestino, como qualquer outro imigrante, perde sua identidade cultural. E, quando uma pessoa perde sua identidade cultural, acaba se despersonalizando, e sendo marginalizada pelos demais. Tal é a representação de Macabéa, assim o fator “determinista” encontrado no manuseio da personagem.
A diretora Suzana Amaral , manteve as características do filme, mas retirou o narrador, porque acreditamos seria muito difícil elaborar o filme com as reflexões e comentários do personagem-narrador. Ou, talvez, para deixar o filme mais claro e compreensível do que o livro, mais complexo em suas conotações.
Nas obras “Divã” e “A Hora da Estrela”, existem muitas semelhanças, e diferenças. A personagem é feminina, a heroína é uma “anti-herói”, e o psicologismo inerente as duas obras. As reflexões e pensamentos em torno da existência humana, a partir das indagações a respeito de si mesmo. O que difere em ambas as personagens, as reflexões intimistas de Macabéa são realizadas através do narrador e, em o “Divã”, a personagem Mercedes realiza o seu próprio descobrimento, sem intervenção de um narrador. Mesmo o seu analista, é o silêncio. O silêncio do leitor que a assiste.
O maior diferencial entre ambas as obras, é o padrão sócio-cultural. Macabéa é uma retirante miserável, vivendo num subúrbio do Rio de Janeiro e, Mercedes, uma dona-de-casa, classe média alta.
Em ambas as obras nos deparamos com a morte, Macabéa morre ao final da história, e a amiga de Mercedes que tem um papel fundamental em sua vida, também morre de câncer. Mercedes se separa de seu marido, após longos anos de vida em comum, e retoma todos os seus conceitos, conceitos que a cultura oferta, mas que muitas vezes não trazem a felicidade e nem a verdade. Esta separação é um rompimento, uma morte, com tudo aquilo feito o passado. Uma transformação, uma renovação, um vir-a-ser. De uma forma bem mais elaborada por Clarice Lispector, Macabéa vai a cartomante, e esta lhe diz que encontrará logo um grande amor, uma estrela em seu caminho, luxo, riqueza, felicidade... E, absorta nesses pensamentos, é atropelada por um carro, que tem a estrela como marca-símbolo. “A Hora da Estrela”, a sua derradeira hora, o seu momento de realização, morre feliz, e porquê não, o momento onde ela consegue deter sua vida, consegue aparar o sentido para sua existência nesse mundo. A morte em ambas as obras tem essa conotação de renascimento. E a obra de arte, literária, ou outra forma de arte, também em sua interação com o mundo, com as pessoas, tem esse sentido de reaparecimento, descobrimento, anúncio, transformação. Não é a toa que o artista é aquele que cria uma outra realidade, um espaço e uma dimensão diversos da realidade ordinária.
Por isso, tão necessário a leitura, a formação de um pensamento, o desassossego que nos leva a produzir coisas novas, a procurar outros elementos e outros meios. A dignidade humana consiste nisso, revelar sua transcendência em mais alguma coisa, ultrapassar seus próprios limites.
A adaptação das obras literárias para o cinema, nos parece válida e importante, mesmo que hajam deformações, ou que a adaptação não chegue a ser aquilo que a obra literária apresenta. Mas toda transmissão e revelação de conhecimento, a produção artística nos parece válida e imprescindível à humanidade.

DENISE FRANÇA

Comentários

Postagens mais visitadas