A CARTA ROUBADA - JACQUES LACAN

O EU NA TEORIA DE FREUD E NA TECNICA DA PSICANALISE

O Seminário – Livro 2
A CARTA ROUBADA
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O que constitui o fundo de todo drama humano, de todo drama de teatro em particular, é o fato de haver liames, nós, pactos estabelecidos. Os seres humanos já estão ligados entre si por compromissos que determinaram o lugar deles, o nome deles, a essência deles. Um outro discurso, outros compromissos, outras falas chegam então. E é certo que há pontos em que é preciso ir as vias de fato. Todos os tratados não se constituem simultaneamente. Alguns são contraditórios. Se se faz a guerra, é justamente para saber que tratado será valido. Graças a Deus, a guerra, por muitas vezes, não é feita. Mas os tratados continuam funcionando, o anel circulando entre as pessoas em varias direções ao mesmo tempo, e, por vezes, o objeto de um jogo de passa-anel encontra o de um outro jogo de passa-anel. Há subdivisão, reconversão, substituição. Aquele que se compromete a jogar o passa anel numa determinada roda deve dissimular que joga também numa outra.
Não é por acaso que vemos aparecer ai personagens régios. Eles se tornam simbólicos do caráter fundamental do compromisso constituído no início. O respeito do pacto que une o homem a mulher tem um valor essencial para a sociedade inteira, e este valor se acha, desde sempre, encarnado ao máximo nas pessoas do casal régio, que joga. Este casal é o símbolo do pacto mais importante, que faz concordar o elemento macho com o elemento fêmea, e ele desempenha tradicionalmente um papel mediador entre tudo o que não conhecemos, o cosmos e a ordem social. Nada será, a mais justo titulo, considerado como escandaloso e repreensível do que aquilo que lhe causa dano.
E é certo que, no estado atual das relações inter-humanas, a tradição fica posta no segundo plano, ou pelo menos velada. Vocês se lembram da fala do rei Farouk, segundo a qual, de ora em diante, só há cinco reis sobre a terra, os quatro reis do baralho e o rei da Inglaterra.
O que é, afinal, uma carta? Como é que uma carta pode ser roubada? Ela pertence a quem? A quem a enviou, ou a quem é destinada? Se disserem que pertence a quem a enviou, no que será que consiste a dádiva de uma carta? Por que é que se manda carta? E se pensarem que ela pertence ao destinatário, como é que, em determinadas circunstâncias, vocês devolvem as cartas ao personagem que com elas os bombardeou durante uma parte da existência de vocês?
Pode-se estar seguro, quando se toma um destes provérbios atribuídos a sabedoria das nações - sabedoria que é assim denominada por antífrase – de deparar-se com uma estupidez. Verba volant , scripta manent. Já pensaram que uma carta é justamente uma fala que voa? Se pode haver uma carta roubada, é porque uma carta é uma folha volante.1 São os scripta que volant, enquanto que as falas, infelizmente, permanecem. Elas permanecem até quando ninguém mais se recorda delas. Exatamente como depois de quinhentos mil sinais na série dos mais e menos, o aparecimento dos α, β, γ, δ permanecerá determinado pelas mesmas leis.
As falas permanecem. O jogo dos símbolos, contra isto vocês nada podem fazer, e é por isso que é preciso tomar muito cuidado com o que dizem. Mas a carta, a letra, essa vai embora. Ela passeia sozinha. Insisti com freqüência para fazer o Sr. Guiraud entender que podia haver sobre a mesa dois quilos de linguagem. Não é preciso que haja tanto – uma folhinha de papel velino é igualmente uma linguagem que ai está. Ela está ai, e só existe enquanto linguagem, ela é a folha volante. Mas ela é também outra coisa, que tem uma função particular, absolutamente inassimilável a nenhum objeto humano.
Os personagens desempenham, pois, seu papel. Há um personagem que treme, a rainha. Sua função consiste em não poder tremer para além de um certo limite. Se ela tremesse só um bocadinho mais, se o reflexo do lago que ela representa – porque ela é a única que verdadeiramente tem plena consciência da cena – se perturbasse um pouco mais, ela deixaria de ser a rainha, seria completamente ridícula, e nós não poderíamos nem sequer suportar a crueldade terminal de Dupin. Mas ela não pia. Há um personagem que não vê nada, o rei. Há o ministro. Há a carta.
Esta carta, que é uma fala endereçada a rainha por alguém, o duque de S., a quem ela é realmente endereçada? Visto ser uma fala, ela pode ter diversas funções. Tem a função de um certo pacto, de uma certa confidência. Tanto faz tratar-se do amor do duque ou de um complô contra a segurança do Estado ou até de uma banalidade. Ela está aí, mas não está aí, ela só está aí em seu valor próprio, em relação a tudo o que ela ameaça, a tudo o que ela viola, a tudo de que ela escarnece, a tudo o que ela põe em perigo ou em suspenso.
Esta carta, que não tem o mesmo sentido em todo lugar, é uma verdade que não convém publicar. Assim que ela passa para o bolso do ministro, ela não é mais o que era antes, seja lá o que for que tenha sido. Ela não é mais uma carta de amor, uma carta de confidência, o anuncio de um acontecimento, ela é uma prova, e se caso for uma prova material. Se imaginarmos este pobre rei, picado por alguma tarântula que dele faria um rei de maior graça, um destes reis, não bonacheirões, capazes de deixar passar a coisa e em seguida enviar sua digna esposa diante dos olhos de altos juízes, como isso se viu em determinados momentos da história da Inglaterra – sempre a Inglaterra -, nós nos damos conta de que a identidade do destinatário de uma carta é tão problemática quanto a questão de saber a quem ela pertence. Em todo caso, a partir do momento em que ela se acha entre as mãos do ministro, ela passa a ser, em si mesma, outra coisa.
O ministro faz, então, um troço bastante singular. Vocês vão-me dizer que é a necessidade das coisas. Mas por que nós, analistas, nos deteríamos nas grosseiras aparências das motivações?
Queria sacar do meu bolso uma carta da época para mostrar a vocês como isso se dobrava e naturalmente esquecia-a em casa. Era uma época em que as cartas eram bem bonitas. Dobrava-se mais ou menos assim – e punha-se o sinete ou o lacre.
O ministro que, em sua esperteza, quer que a carta passe despercebida, redobra-a para o outro lado e amarrota-a. E é muito possível, ao redobrá-la, fazer aparecer uma superficiezinha nua e plana sobre a qual pode-se por um outro sobrescrito e um outro sinete, negro ao invés de vermelho. No lugar da letra alongada do nobre senhor vem uma letra feminina que endereça a carta ao próprio ministro. E é sob esta forma que a carta jaz no porta-cartas, onde o olho de lince de Dupin não vai deixá-la escapar porque, como nós, ele meditou sobre o que vem a ser uma carta.
Esta transformação não fica suficientemente explicada, para nós analistas, pelo fato de o ministro querer que não a reconheçam. Não é de um jeito qualquer que ele a transformou. A esta carta, que não sabemos o que era, ele faz com que, de certa maneira, ela lhe seja remetida sob sua nova e falsa aparência, especifica-se até por quem – por um personagem feminino de sua linhagem, que tem a letra feminina e miúda – e ele faz com que ela lhe seja remetida com seu próprio sinte.
Eis uma curiosa relação consigo mesmo. Há uma súbita feminização da carta e, ao mesmo tempo, ela entra numa relação narcísica – já que agora ela lhe é endereçada com esta letra feminina requintada e leva seu próprio carimbo. E é uma espécie de carta de amor que ele se manda a si mesmo. E é muito obscuro, indefinível, não quero forçar nada, e, na verdade, se falo desta transformação, é por ela ser correlativa de algo muito mais importante que diz respeito ao comportamento subjetivo do próprio ministro.
Detenhamo-nos neste drama, vejamos o que o amarra.
Em que o fato de a carta estar em posse do ministro é assim tão doloroso que tudo surge do fato de a rainha precisar, com absoluta urgência, recuperá-la?
Como o faz notar um dos interlocutores inteligentes – o narrador, que também é testemunha -, este negócio só tem alcance se a rainha souber que este documento está em posse do ministro. Ela sabe, enquanto que o rei nada sabe.
Suponhamos então, que o ministro se comporte com uma sem-vergonhice intolerável. Ele sabe que é poderoso, comportar-se como tal. E a rainha – é preciso crer que ela tenha voz ativa nos negócios – intervém em seu favor. Os desejos, que se supõem ao poderoso ministro, são satisfeitos, nomeia-se fulano para tal lugar, se lhe dá ta! colega, se lhe permite formar maiorias diante da Câmara monárquica, que só lhe parece por demais constitucional. Mas nada indica que o ministro tenha dito algo, jamais pedido algo a rainha. Pelo contrario, ele tem a carta e cala-se.
Cala-se, quando, no entanto, é portador de uma carta que ameaça o fundamento do pacto. E é portador da ameaça de uma desordem profunda, não reconhecida, recalcada e cala-se. Ele poderia ter uma atitude que qualificaríamos de altamente moral. Ele poderia fazer admoestações a rainha. Claro que ele seria hipócrita, mas ele poderia colocar-se como defensor da honra de seu senhor, como vigilante guardião da ordem. E talvez a intriga amarrada com o duque S. seja perigosa para a política que ele supõe ser a boa. Mas ele não faz nada disso.
Ele nos é representado como um personagem essencialmente romântico, e não deixa de nos fazer pensar no Sr. de Chateaubriand, do qual não teríamos a recordação de um personagem tão nobre, não tivesse sido ele cristão. Pois, se lermos o sentido verdadeiro de suas Memórias, será que ele não se declara ligado a monarquia por fé jurada só para poder dizer da maneira mais clara que, afora isso, ele acha que são uns sacanas? De maneira que ele pode fazer figura deste monstrum horrendum de que nos falam para justificar a ira final de Dupin. Há uma maneira de defender os princípios, como se vê ao se ler Chateaubriand, que é a melhor maneira de aniquilá-los.
Por que será que nos apresentam o ministro como tal monstro, como um homem sem princípios? Ao se olhar de perto as coisas, isto quer dizer que ele não confere aquilo que detém em seu poder nenhum sentido da ordem de uma compensação ou de uma sanção qualquer. Do conhecimento que tem desta verdade sobre o pacto, ele não faz nada. Não faz nenhuma recriminação a rainha nem a incita a entrar nos eixos colocando-se no plano do confessor ou do diretor de consciência, assim como não vai dizer-lhe toma lá da cá. O poder que a carta pode conferir-lhe, ele o suspende na indeterminação, não lhe dá nenhum sentido simbólico, joga apenas com o seguinte – entre ele e a rainha se estabelece esta miragem, esta fascinação recíproca, que é o que eu lhes anunciava há pouco, ao falar de relação narcísica. Relação dual entre o senhor e o escravo fundamentada na ameaça indeterminada da morte em último termo, mas, neste caso, sobre os temores da rainha.
Estes temores da rainha, se formos olhar de perto, são muito exagerados. Pois, como se assinala no conto, esta carta talvez seja uma arma terrível, bastaria, porém, que fosse posta em jogo para ser aniquilada. E é uma arma de dois gumes. Não se sabe que seqüência poderia ser dada a revelação da carta pela justiça retributiva, não apenas de um rei, mas de todo um conselho, de toda a organização envolvida em semelhante escarcéu.
No final das contas, o caráter intolerável da pressão constituída pela carta é devido ao ministro ter, em relação a carta, a mesma atitude que a rainha – ele não fala dela. E pelo simples fato de não poder falar dela, ele se encontra, no decurso da segunda cena, na mesma posição que a rainha, e ele não vai poder deixar de fazer com que lhe furtem a carta. Isto não é devido a esperteza de Dupin, porém a estrutura das coisas.
A carta roubada tornou-se uma carta escondida. Por que será que os policiais não a encontram? Não a encontram porque não sabem o que é uma carta. Não o sabem porque são a polícia. Todo poder legítimo, assim como toda espécie de poder, repousa sempre sobre os símbolo. E a polícia, assim como todos os outros poderes, também repousa sobre os símbolo. Como puderam ver em períodos de agitação, vocês se teriam deixado prender que nem carneirinhos se uma cara lhes tivesse dito Polícia! e mostrado uma carteira, caso contrário, começariam a quebrar-lhes a cara tão logo ele tivesse posto a mão em vocês. Só que a pequena diferença que existe entre a polícia e o poder é que persuadiram a polícia de que sua eficácia repousa na força – isso não é para que se sinta confiante, mas, pelo contrário, para limitá-la em suas funções. E graças ao fato de a polícia crer que é pela força que ela exerce sua função, ela é tão impotente quanto se possa desejar.
Quando se lhe ensina outra coisa, como se tem feito de uns tempos para cá em determinadas zonas do mundo, vê-se no que dá. Obtém-se a adesão universal aquilo que chamaremos simplesmente de doutrina. Pode-se fazer quem quer que seja enquadrar-se numa posição mais ou menos indiferente em relação ao sistema dos símbolos, e obtém-se assim todas as confissões do mundo, faz-se endossar por quem quer que seja qualquer elemento da cadeia simbólica, ao bel prazer do poder despido do símbolo, ali onde certa meditação pessoal falta.
A polícia por acreditar na força, e da mesma feita no real, procura a carta. Como eles dizem – Procuramos por toda parte. E não acharam, porque se trata de uma carta, e que uma carta está justamente em lugar nenhum.
Não é um joguinho mental. Reflitam – por que será que eles não a encontram? Ela está aí. Eles a viram. Viram o que? Uma carta. Talvez a tenham até aberto. Mas não a reconheceram. Por quê? Tinham dela uma descrição – Ela tem um carimbo vermelho e tal sobrescrito. Ora, ela tem outro carimbo e não tem tal sobrescrito. Dir-me-ão vocês – E o texto? Mas justamente, o texto não lhes foi dado. Pois, das duas uma, ou o texto tem importância ou não tem. Se ele tem importância, e mesmo que ninguém, salvo o rei, possa entendê-lo, convém, no entanto, que não fique dando sopa.
Vocês estão vendo bem que só pode haver algo escondido na dimensão da verdade. No real, a própria idéia de um esconderijo é delirante – por mais longe nas entranhas da terra que alguém tenha ido levar algo, isso lá não está escondido, já que se ele foi, vocês também podem lá ir. Só pode estar escondido o que é da ordem da verdade. E é a verdade que está escondida, não a carta. Para os policiais, a verdade não tem importância, para eles só existe realidade, e é por esta razão que eles não encontram.
Em compensação, ao lado de seus reparos sobre o jogo de par ou ímpar, Dupin faz considerações lingüísticas, matemáticas, religiosas, especula constantemente sobre os símbolo, falando ate do não-sentido das matemáticas – pelo que apresento minhas desculpas aos matemáticos aqui presentes. Tentem pois, diz ele, dizer um dia diante de um matemático que talvez x2 + px não seja exatamente igual a q – e ele imediatamente vai desancá-los. Que nada, já que freqüentemente entretenho-me com Riguet de minhas suspeitas sobre este assunto, e nada de semelhante jamais me aconteceu. Pelo contrário, nosso amigo me incita a prosseguir nestas especulações. Enfim, é por Dupin ter refletido um pouco sobre o símbolo e a verdade que ele vai ver o que tem para se ver.
Na cena que nos descrevem, Dupin encontra-se diante de uma curiosa exibição. O ministro dá mostra de uma bela indolência – a qual não engana o hábil homem, que sabe que há por baixo disso a extrema vigilância, a astúcia terrível do personagem romântico, capaz de tudo, para o qual o termo sangue-frio, vejam isso no Stendhal, parece ter sido inventado. Ei-lo deitado, entediado, que sonha – Nada é suficiente, numa época decadente, para ocupar os pensamentos de um grande espírito. O que fazer quando tudo vai por água abaixo? Eis o tema. Enquanto isto, Dupin, de óculos verdes, olha por todo canto e tenta fazer-nos crer que é seu gênio que lhe permite ver a carta. Mas não é não.
Assim como era a rainha que na verdade indicara a carta ao ministro, assim é o ministro quem entrega seus segredo a Dupin. Será que não há algo como uma ressonância entre a carta de sobrescrito feminino e este Páris enlanguescido? Dupin lê literalmente aquilo que a carta virou na atitude amolecida deste personagem do qual ninguém sabe o que quer, a não ser levar tão longe quanto possível o exercício gratuito de sua atividade de jogador. Aí está ele, desafiando o mundo como desafiou o casal régio com o rapto da carta. O que isto quer dizer? – senão que, por estar em relação a carta na mesma posição em que a rainha estava, numa posição essencialmente feminina, o ministro sucumbe aquilo que ocorreu com ela.
Vocês me dirão que não há, como anteriormente, os três personagens e a carta. A carta está aí, há dois personagens, mas onde está o rei? Pois bem, é evidentemente a polícia. Se o ministro se sente tão tranqüilo, é porque a polícia faz parte de sua segurança, assim como o rei fazia parte da segurança da rainha. Proteção ambígua – é a proteção que ele lhe deve no sentido em que o esposo deve auxílio e proteção a esposa, é também a proteção que ela deve a sua cegueira. Mas um nada bastou, uma mudançazinha de equilíbrio, para que no interstício a carta fosse sutilizada. E é o que ocorre com o ministro.
E é um erro de sua parte acreditar que pode ficar tranqüilo pelo fato de a polícia, que revista seu palacete há meses, não a ter encontrado. Isto não prova nada, tal como para a rainha a presença do rei incapaz de ver a carta não era uma proteção eficaz. Onde está seu erro? Está em ter olvidado que se a polícia não encontrou a carta, não é por esta não poder ser achada, e sim porque a polícia procurava outra coisa. A avestruz acredita estar em segurança porque ela está com a cabeça dentro da terra – ele é uma avestruz aperfeiçoada que acreditaria estar protegida porque uma outra avestruz - outra-truz - estaria com a cabeça dentro da areia. E ela se deixa depenar o traseiro por uma terceira que lhe arrebata as plumas e com elas fabrica para si um penacho.
O ministro está na posição que fora a da rainha, a polícia na do rei, deste rei degenerado que só acredita no real, e que não vê nada. A decalagem dos personagens é perfeita. E pelo fato de ele se ter interposto na seqüência do discurso e de ter caído na posse desta cartinha de nada, que é suficiente para causar grandes estragos, este esperto entre os espertos, este ambicioso entre os ambiciosos, este intrigante entre os intrigantes, este diletante entre os diletantes, não vê que se lhe vai surrupiar o segredo nas suas ventas.
Basta um nada, suficientemente assinalador da polícia, para desviar por um instante sua atenção. Com efeito, se o incidente da rua atrai sua atenção, é por ele saber-se vigiado da polícia – Como é que pode ocorrer algo diante de minha casa quando estou com três tiras em cada esquina? Não só ele se feminizou com a posse da carta, mas além disto esta última, de cuja relação com o inconsciente lhes falei, lhe faz esquecer o essencial. Vocês conhecem a história do cara encontrado numa ilha deserta para onde ele se retirou para esquecer – Para esquecer o quê? – Esqueci. Pois bem, ele também esqueceu que, apesar de estar sob a vigilância da polícia, não se deve, no entanto, acreditar que ninguém vá funcionar melhor.
A etapa seguinte é bastante curiosa. Como é que Dupin se comporta? Note que há um longo intervalo entre as duas visitas do chefe de polícia. A partir do momento em que ele tem a carta, Dupin também não pia para ninguém. Em suma, ter esta carta – eis justamente aí a significação da verdade que fica passeando – lhe cala o bico. E, com efeito, com quem é que ele poderia ter falado? Ele deve estar bem atrapalhado.
Graças a Deus, como um chefe da polícia sempre volta ao local de seus crimes, lá vem o chefe de polícia e o interroga. O outro lhe conta uma história de consulta gratuita absolutamente sublime. Trata-se de um medico inglês de quem se procura arrebatar a indicação de uma receita – O que tomar neste caso, doutor? – Tomar uma consulta. Dupin indica, pois, ao chefe da polícia que honorários não seriam assim tão mal vindos. O cara prontifica-se imediatamente e o outro lhe diz – Pois bem, ela está na minha gaveta.
Será que isto quer dizer que este Dupin, que até então era um maravilhoso personagem, de uma lucidez quase que demasiada, tornou-se de repente um reles tratante? Não hesito em ver aí o resgate daquilo que se poderia chamar de a mana ruim vinculada a carta. E, com efeito, a partir do momento em que ele recebe honorários, ele tira o corpo da jogada. Não é só por ter passado a carta a um outro, mas porque, para todo mundo, seus motivos são claros – ele recebeu grana, ele cai fora. O valor sagrado da retribuição de tipo honorário está indicado de maneira manifesta pelo pano de fundo da historieta médica.
Não quero insistir, mas talvez vocês me façam delicadamente notar que nós também, que estamos o tempo todo servindo de portadores de todas as cartas roubadas do paciente, nós também cobramos mais ou menos caro. Reflitam bem no seguinte – se nós não cobrássemos, entraríamos no drama de Atreu e de Tieste que é o de todos os sujeitos que nos vem confiar a verdade deles. Eles nos contam umas histórias danadas e por isto não estamos nem um pouco na ordem do sagrado nem na do sacrifício.Todo mundo sabe que o dinheiro não serve simplesmente para comprar objetos, mas que os preços que, em nossa sociedade, são calculados o mais exatamente possível, tem como função amortecer algo de infinitamente mais perigoso do que pagar em dinheiro, que consiste em dever algo a alguém.
E é disso que se trata. Quem quer que tenha esta carta entra no cone de sombra que necessita o fato de ela ser destinada – a quem? senão a quem isto interessa – ao rei. E ela vai acabar chegando a ele, mas não é bem assim como Dupin conta em sua historiazinha imaginária, na qual o ministro, após algumas afrontas da rainha, é tolo o bastante para deixar explodir a história. Ela realmente chega até o rei, e é sempre um rei que não sabe de nada. Mas o personagem do rei mudou no intervalo. O ministro que, mudado de lugar, se tornara rainha, é ele agora que e o rei. Na terceira etapa, ele tomou o lugar do rei, e ele tem a carta.
Isso, naturalmente, não é mais a carta que passou de Dupin para o chefe da polícia – e daí para o quartinho escuro, pois que não venham dizer-nos que a odisséia da carta está acabada -, é uma nova forma da carta, que Dupin lhe deu, bem mais instrumento do destino do que Poe nos mostra, forma provocante que confere a historiazinha seu lado incisivo e cruel para uso das balconistas. Quando o ministro desdobrar o papel, lerá estes versos que o esbofeteiam.
Um dessein si funeste,
s’il n’est digne d’Atrée, est figne de Tieste.2
E, com efeito, se porventura ele tiver de abrir esta carta, só lhe restará sofrer as conseqüências de seus próprios atos, comer como Tieste seus próprios filhos. E é justamente com isto que temos todos os dias de lidar, cada vez que a linha dos símbolos topa em obstáculo terminal – são nossos atos que vem ao nosso encontro. Trata-se aqui, de repente de pagar a vista. Trata-se, como se diz, de prestar contas de seus crimes –o que aliás quer dizer que, se souberem prestar conta deles, não serão castigados. Se ele realmente cometer esta loucura de sacar da carta, e sobretudo se não verificar um pouco antes se é ela mesma que aí está, ao ministro, só lhe restará com efeito seguir a palavra de ordem que eu lançara ironicamente em Zurich, em resposta a Leclaire - Coma teu Dasein! E é a refeição de Tieste por excelência.
Seria realmente preciso que o ministro tivesse levado a loucura o paradoxo do jogador para que chegasse até a sacar da carta. Seria preciso que ele fosse realmente, até o fim, um homem sem princípios, sem nem mesmo este princípio, o derradeiro, este que para a maioria dentre nós permanece, que é simplesmente um resquício de besteira. Se cair na paixão ele achará a rainha generosa, digna de respeito e de amor – é totalmente estúpido, porém isso o salvará . Se cair no ódio puro e simples, ele tentará desferir o golpe de maneira eficaz. Só mesmo se seu Dasein estiver totalmente descolado de toda inscrição numa ordem qualquer, até mesmo numa ordem intima, a de seu escritório, de sua mesa, só mesmo neste caso é que ele terá de beber o cálice até a última gota.
Tudo isto, poderíamos conseguir escrevê-lo com pequenos alfa, beta, gama. Tudo aquilo que pode servir para definir os personagens como reais – qualidades, temperamento, hereditariedade, nobreza – não tem nada a ver com o negócio. A cada instante cada um está definido, e até mesmo em sua atitude sexual, pelo fato de que uma carta sempre chega a seu destino.
26 de abril de 1955.
JACQUES LACAN
NOTAS:
1. S’il peut y avoir une letter volée, c’est qu’une letter est une feulle volante. Jogo de palavras: voler, significa roubar e também voar. La letter vole poderia também ser traduzida por a carta voada, que voou.
2. Um desígnio tão funesto/ Se não for digno de Atreu é digno de Tiestes. Deixamos em frances no texto já que nem Poe o traduz em seu conto.

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